2005-04-02

Papel mata-borrão - 1.º pingo de tinta

Pegadas...

Desenhei as minhas primeiras letras na areia com uma pena móvel, colorida na extremidade dura e rosada, que também me ajudava a pegar na colher de alumínio que trincava quando não queria comer - tantas vezes! -, que alternei com uma cana quando já me sentia uma menina crescida e ambas foram meus instrumentos de trabalho, tão gostoso, que, apesar das mudanças - o cheiro delirante e imútavel dos lápis, o cuidado com o aparo, a descoberta das esferográficas coloridas, a descarga de tensão e a projecção no teclado - ainda não me cansou...
Colhi salgadeiras; admirei chorões salteados de flores garridas; cheirei camarinheiras e com os seus frutos agridoces que o meu paladar farto rejeitava, preparei deliciosos pratos para as minhas amigas de infância, a quem emprestava a minha voz disfarçada, o meu sorriso puro de criança e a minha imaginação; fui jardineira de jarros brancos e açúcenas perfumadas, que me cumprimentavam inclinadas; corri nos pinhais e entre pedras, fetos, rosmaninho, alecrim; vi nascentes encherem rios de lavadeiras e senti a frescura das suas águas; fiz gaitas com canas verdes; inventei anéis e colheres - "de brincar" com requintados cabos de cana seca cortada - com conchas de lapa, que aprendi a apanhar nas rochas com destreza de trapezista descalça; namorei o céu e contei as estrelas; senti a frescura da chuva, entrei nas poças e lambi gotas; reconheci o tempo que se avizinhava nas vozes do mar e do vento; vi a terra iluminada pela luz dos relâmpagos; enfrentei o ribombar dos trovões; identifiquei motores de barcos que navegavam; brinquei com o sol que beijava a aurora; andei às cavalitas dos tios que jogavam ao pião; adormeci encantada com os contos do avô; fechei os olhos, respirei maresias sem fim, venci vendavais e sobrevivi a tempestades...

Menina da Ribeira

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