2005-05-01

Reflexos - XXVIII

POEMA À MÃE

No mais fundo de ti,
eu sei que traí, mãe.

Tudo porque já não sou
o menino adormecido
no fundo dos teus olhos.

Tudo porque tu ignoras
que há leitos onde o frio não se demora
e noites rumorosas de águas matinais.

Por isso, às vezes, as palavras que te digo
são duras, mãe,
e o nosso amor é infeliz.

Tudo porque perdi as rosas brancas
que aperttava junto ao coração
no retrato da moldura.

Se soubesses como ainda amo as rosas,
talvez não enchesses as horas de pesadelos.

Mas tu esqueceste muita coisa;
esqueceste que as minhas pernas cresceram,
que todo o meu corpo cresceu,
e até o meu coração
ficou enorme, mãe!

Olha - queres ouvir-me? -
às vezes ainda sou o menino
que adormeceu nos teus olhos;

ainda aperto contra o coração
rosas tão brancas
como as que tens na moldura;

ainda oiço a tua voz:
Era uma vez uma princesa
no meio de um laranjal...


Mas - tu sabias - a noite é enorme,
e todo o meu corpo cresceu.
Eu saí da moldura,
dei às aves os meus olhos a beber.

Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo-te as rosas.

Boa noite. Eu vou com as aves.

Eugénio de Andrade

3 comentários:

Anónimo disse...

Alguns conselhos retirados de revistas femininas dos anos 50 e 60:

Não se deve irritar o homem com ciúmes e dúvidas.
(Jornal das Moças, 1957)

Se desconfiar da infidelidade do marido, a esposa deve redobrar o seu carinho e provas de afecto.
(Revista Claudia, 1962)

A desarrumação numa casa-de-banho desperta no marido a vontade de ir tomar banho fora de casa.
(Jornal das Moças, 1965)

A mulher deve fazer o marido descansar nas horas vagas. Nada de incomodá-lo com serviços domésticos.
(Jornal das Moças, 1959)

Se o seu marido fuma, não arranje zanga pelo simples facto de cair cinzas nos tapetes. Tenha cinzeiros espalhados por toda casa.
(Jornal das Moças, 1957)

A mulher deve estar ciente que dificilmente um homem pode perdoar a uma mulher que não tenha resistido a experiências pré-núpciais, mostrando que era perfeita e única, exactamente como ele a idealizara.
(Revista Claudia, 1962)

O noivado longo é um perigo.
(Revista Querida, 1953)

É fundamental manter sempre a aparência impecável diante do marido.
(Jornal das Moças, 1957)

O lugar da mulher é no lar. O trabalho fora de casa masculiniza.
(Revista Querida, 1955)

Anónimo disse...

Aurora
este é o mais belo poema dedicado à Mãe e provavelmente um dos melhores de Eugénio de Andrade.
mjb

kanuthya disse...

Sempre foi dos meus favoritos :)