2005-03-20

Claro, José Régio!

(Eu sei que é um pouco longo este poema,mas, faça um esforço e leia até ao fim.
Proponho-lhe mesmo que leia em voz alta e com entoação.
Verá a força e a verdade que ele encerra.
E repare como não perdeu a actualidade.
Quantas pessoas não "se perdem " apenas porque em vez de seguir o seu próprio caminho, foram atrás de vozes "doces" que lhe disseram :- "Vem por aqui...)

CÂNTICO NEGRO

"Vem por aqui!"-dizem-me alguns com olhos doces.
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "Vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há nos meus olhos alegrias e cansaços)
E cruzo os braços
E nunca vou por ali...

A minha glória é essa:
Criar desumanidade,
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem- vontade
Com que rasguei o ventre a minha mãe.

Não! Não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se às coisas que eu pergunto (em vão)ninguém responde
Porque me dizeis vós: - "Vem por aqui"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...

Se eu vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada.
O mais que eu faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis machados,ferramentas e coragem
Para eu derrotar os meus obstáculos?
Corre nas vossas veias sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil...
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes Pátrias , tendes tectos,
E tendes livros, e tratados, e filósofos, e sábios.
Eu tenho a minha loucura:
Levanto- a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma e sangue e cânticos nos lábios!

Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém!
Tosdos tiveram pai, todos tiveram mãe:
Mas eu, que nunca principio nem acabo
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo!

Ah! Que ninguém me dê piedosas intenções.
Ninguém me peça definições.
Ninguém me diga "Vem por aqui!"
A minha vida é um vendaval que se soltou.
é uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou.
Não sei para onde vou.
- Sei que não vou por aí.

(José Régio)

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