2005-04-16

Papel mata-borrão - 4.º pingo de tinta

Com tinta azul, calma e contemplativa, reescrevo o circo, espectáculo único da minha meninice, de um dia especial em que o meu filho mais velho dançou alegremente no meu ventro ao som de um órgão - instrumento que veio a aprender a tocar com destreza, segundo a professora -, de renovada vivência durante doces anos entre entusiasmos, gargalhadas e silêncios meio assustados dos meus meninos e demais crianças...
O vento trazia a voz rouca, apressada e ansiosamente esperada do anúncio da festa, antes de se avistar o carro iluminado com a insígnia do circo, e da leitura imaginária e hipnótica dos cartazes.
A entrada para os espectadores de palmo e meio podia ser gratuita, mas muitos pagavam os seus próprios bilhetes antecipadamente com colheradas de comida engolidas sem apetite, com bons comportamentos indesejados, mas oportunamente necessários...
As "roulottes" encantadas, as jaulas robustas, os carros cansados de transporte de animais, a azáfama ininterrupta dos empregados, a elevação da tenda com a sua cúpula - "chapiteau"- decorada com luzes apelativas e freneticamente cintilantes, faziam antever: a pista; as bancadas; os músicos com os seus fatos vermelhos de galões e botões dourados; o apresentador enérgico e palrador; as exibições emocionantes dos acrobatas; os perigosos, suspensos e silenciosos voos e saltos mortais dos trapezistas; os temerários domadores de feras obedientes, que mostravam os dentes ao som do chicote; os ginastas de corpo elástico e flexível; os mágicos que faziam aparecer e desaparecer coelhos, pombas, lenços e faziam nascer moedas das orelhas e dos narizes dos espectadores mais próximos; os malabaristas, exibindo arcos e esferas; os macaquinhos ciclistas; os cavalos inteligentes e habilidosos, ao compasso da música, e os cavaleiros heróis; os elefantes possantes e ginastas; os esperados palhaços de vestimentas fantásticas, garridas, desmedidas, de sapatos de gigante pobre, de rosto de cal, de enormes narizes vermelhos e esborrachados, de bocas de peixe, que faziam rir com os gestos e com palavras, mas pareciam magoar-se nos pregos, nas trampolins, nas cambalhotas...; os doces, as fotografias e as recordações que uma bonita e elegante artista / vendedora "oferecia" num tabuleiro que pendia do seu pescoço...; os aplausos antecidos de choros de crianças sensíveis e de gritinhos de senhoras "frágeis"; o doloroso desfile final, as pirâmides coloridas de animais, artistas, misturado com o brilho encandeante de lantelojas, entre sorrisos e gestos de despedida e de agradecimento de todos os protagonistas do espectáculo, suscitando vontade de permaner ali ou voltar na sessão seguinte...

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