2005-08-05

Linhas e Entrelinhas - XIV

"Paris, 20.6.70

Meu Caro

(...)
Vamos ter muito que falar a propósito da História da Literatura. Cada vez me convenço mais de que o estudo das circunstâncias histórico-sociais das obras literárias apenas pode determinar os limites exteriores delas, as margens onde elas acabam ou começam. A literatura, como a música, vira as costas à prática social, à acção. Lembrei-me da história do Lenine que durante anos não quis ouvir Beethoven porque isso o amolecia para a acção.

Tudo isto me voltou à superficie ao responder a um inquérito de um brasileiro, professor de Teoria da Literatura em Porto Alegre, Dionísio Castelo, que está reunindo uma série de depoimentos franceses, italianos, espanhóis, portugueses, etc., sobre teoria da literatura. Tu e eu contamo-nos entre os raríssimos portugueses da colectânea. Resolvi sistematizar o que tenho pensado sobre o assunto, e que se resume ao seguinte:

I) A obra literária não é uma mensagem normal, porque se caracteriza por querer conter dentro de si mesma o Emissor, o Receptor, os referentes e o código, constituindo um mundo autónomo, sobre si. (Por aí, afasta-se deliberadamente da prática social).

II) A literatura procura destruir o valor representativo do sinal linguístico, no sentido de confundir a Palavra e a Coisa (e também por aí volta as costas à acção).

III) A função principal do crítico literário é determinar a autonomia da obra, o grau em que ela constitui uma estrutura sobre si.

IV) Na obra, é o todo que dá sentido às partes. O crítico não deve portanto partir das partes para o todo, mas inversamente.

V) Entre o autor e o crítico (ou leitor) só há comunicação ao nível subjectivo, isto é a obra só se consuma quando desperta no leitor a corrente subjectiva da comunicação, a sympathia.

(...) Fui votado para dirigir o Instituto Português de Amsterdam(...). Entre outros concorrentes, o J. de Sena e o Coimbra Martins. (...)

Continuo a querer ir para o Porto, mas havia pessoas ( e entre elas suspeito que o Mário Soares) dispostas a interpretar essa ida como um compromisso político meu. Irei quando toda a gente perceber que não preciso disso. (...)

Abraços para ti e para os teus do António José".

Nota: Carta de António José Saraiva para Óscar Lopes

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